Familiares de pessoas privadas de liberdade trilham rotineiramente árduos caminhos para visitar seus seres queridos que se encontram privados de liberdade. Devido a sua presença constante nas unidade prisionais, eles e elas sabem o que está acontecendo dentro desses estabelecimentos, entendem as experiências das pessoas presas, e conhecem os riscos que existem nesses locais. 

Com base nessa rica experiência, os e as familiares de pessoas privadas de liberdade são convidados a integrar as equipes de visita de inspeção do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura do Brasil (MNPCT) na qualidade de especialistas da sociedade civil. Carolina Barreto Lemos, perita do MNPCT, explica o valor da inclusão das familiares no seu trabalho.

1. Em um artigo recente publicado pela Agência Brasil (Familiares são pilares de combate à tortura em presídios), a senhora descreve os e as familiares de pessoas privadas de liberdade como pilares da prevenção e do enfrentamento à tortura. O que quer dizer com isso?

Há dois aspectos principais nessa declaração. O primeiro é no sentido de reconhecer a presença regular de familiares nas unidades prisionais. Eles e elas monitoram as condições de custódia de seus parentes e tomam as medidas adequadas junto às autoridades para garantir seus direitos sob custódia. Também é importante observar que as pessoas privadas de liberdade no Brasil têm pouco ou nenhum acesso a canais de comunicação externos para encaminhar suas reclamações ou queixas. Esse papel é exercido principalmente por familiares e amigos.

O segundo aspecto reflete a importância do diálogo contínuo entre os e as familiares e os órgãos de monitoramento e de inspeção. Devido ao seu contato regular com as pessoas presas, os e as familiares são interlocutores vitais que ajudam a orientar o trabalho de monitoramento dos órgãos competentes. Eles e elas sabem quais locais enfrentam as maiores dificuldades e quais questões demandam uma atenção específica durante as inspeções, permitindo, assim, o melhor planejamento e execução das políticas para a prevenção da tortura. 

2. Nesse mesmo artigo, a senhora mencionou que o MNPCT convida familiares de pessoas privadas de liberdade para participar de suas visitas de monitoramento na qualidade de especialistas convidados, o que se enquadra dentre suas prerrogativas de convidar “representantes de entidades da sociedade civil, peritos e especialistas com atuação em áreas afins” para atuar nas visitas de monitoramento (artigo 9º, § 2º da Lei 12.847/2013). O que inspirou o MNPCT a adotar essa abordagem?

Fomos inspirados pelo entendimento de que as pessoas privadas de liberdade e suas famílias deveriam ser defensoras das políticas de prevenção da tortura. Queríamos encontrar maneiras concretas de valorizar seus conhecimentos e perspectivas sobre como melhorar as condições de custódia. Portanto, adotamos uma visão ampla do significado de "especialista", entendendo que isso pode incluir diferentes tipos de conhecimento, desde o conhecimento acadêmico e o treinamento formal até o conhecimento adquirido por meio da experiência ou vivência real de privação de liberdade. 

Os e as familiares, independentemente de sua educação formal, lidam diariamente com as autoridades e órgãos do Estado responsáveis pela custódia de pessoas privadas de liberdade. Eles acumularam um amplo conhecimento das dificuldades enfrentadas pelas pessoas presas e das melhores estratégias para lidar com tais obstáculos. Do nosso ponto de vista, essa experiência prática constitui um conhecimento técnico valioso que deve ser levado em conta no monitoramento de locais de privação de liberdade.

3. Quais conhecimentos ou perspectivas únicas os e as familiares trazem para o MNPCT quando vocês conduzem visitas, entrevistam as pessoas presas e propõem recomendações?

Considerando o grande número de locais de privação de liberdade e de custódia no Brasil, o MNPCT deve selecionar os estabelecimentos que mais necessitam de nossa atenção. Nosso diálogo com os e as familiares é fundamental para poder tomar essa decisão. Os e as familiares nos fornecem informações detalhadas sobre as condições desses estabelecimentos e viabilizam que tomemos uma decisão informada ao selecionar as unidades que serão inspecionadas.

Uma vez selecionadas, o MNPCT deve então reunir informações e dados específicos sobre esses estabelecimentos para que a equipe saiba o que verificar e procurar durante a inspeção. Os e as familiares geralmente fazem contribuições excepcionais nesse sentido, indicando, por exemplo, quais aspectos devemos dar mais atenção e quais espaços ou instalações devemos priorizar durante a fiscalização. Isso é especialmente importante para que possamos planejar a inspeção das alas, celas ou setores específicos onde as condições estruturais, materiais ou de custódia das pessoas presas podem ser particularmente cruéis ou desumanas.

4. Qual tipo de treinamento, formação ou apoio os e as familiares recebem antes de se juntarem à equipe do MNPCT em uma visita de inspeção oficial?

Todos os especialistas que são convidados a se unirem à equipe do MNPCT em visitas de monitoramento - sejam familiares ou não - devem participar de reuniões e diálogos prévios com o MNPCT, onde explicamos nossa metodologia de trabalho. Discutimos como estruturamos nossas visitas e damos instruções sobre como proceder durante a inspeção, inclusive como proceder, o que vestir e o que devem ou não levar consigo. Além disso, fornecemos a todos os especialistas as ferramentas de inspeção do MNPCT, como nossas diretrizes metodológicas, listas de verificação e questionários. Esse material é revisado e explicado durante as reuniões de preparação para a inspeção.

Quando convidamos familiares para participar da equipe de fiscalização, também realizamos uma avaliação de risco com eles ou elas. Para preservar sua segurança e a segurança das pessoas privadas de liberdade, os e as familiares nunca participam de inspeções nos estabelecimentos onde seus parentes estão custodiados. Em vez disso, os e as familiares são convidados a participar de inspeções a unidades onde não possuam histórico de contato direto com pessoas privadas de liberdade, desde que sintam que isso é seguro para eles e elas e para seus seres queridos

5. Há riscos envolvidos para os e as familiares quando denunciam ou tornam públicas alegações de tortura ou maus-tratos? Que tipo de retaliação eles ou as pessoas privadas de liberdade podem enfrentar?

A retaliação contra familiares - por exemplo, quando relatam ou fazem alegações públicas de tortura ou maus-tratos - acontece com frequência. Temos relatos de intimidações que incluem o cancelamento da visita social sem uma justificativa plausível, atos de agressão física ou psicológica contra a pessoa privada de liberdade, a perda do trabalho ou do estudo pela pessoa privada de liberdade, o isolamento da pessoa privada de liberdade por meio da colocação em espaços de punição disciplinar ou a sua transferência para uma instituição distante do domicílio da família.

No entanto, o MNPCT também observou que algumas familiares se tornaram ativistas que mobilizam a opinião pública e que engajam os órgãos e instituições públicas no diálogo sobre questões importantes. Isso pode ter um efeito positivo na prevenção dessas represálias porque, se realizado de forma responsável, esse perfil ajuda a posicionar os e as familiares como atores legítimos no espaço público, o que, por sua vez, contribui para um maior controle social de possíveis atos de retaliação ou represália

[versão original em inglês]
 

Blog Thursday, March 28, 2024

Escrito por