Autor: Marcos Faleiros da Silva

Em 2015, o Supremo Tribunal Federal determinou aos juízes e tribunais brasileiros que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizassem audiências de custódia, viabilizando o comparecimento da pessoa privada de liberdade perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão, diante da precária situação carcerária brasileira, com excesso de encarceramento sem o esperado resultado na diminuição da criminalidade.

De acordo com a Corte Suprema Brasileira o “presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como ‘estado de coisas inconstitucional’”.

Em verdade, conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional, em 2019 a população prisional brasileira atingiu a impressionante marca de 758.676 presos, colocando no Brasil o triste predicado de um dos países que mais prendem no mundo. Em números absolutos, o Brasil já atingiu a posição de 3º lugar do mundo de reclusos. Importante ressaltar que em 1990 o Brasil abrigava em torno de 90.000 pessoas privadas de liberdade, portanto a população prisional brasileira sofreu um absurdo aumento de 840% em pouco mais de 29 anos.

Apesar do superlativo aumento das pessoas privadas de liberdade, não houve uma diminuição da criminalidade e, ainda, gerou como consequencia a proliferação dentro das penitenciárias das facções criminosas, ou gangues, que se aproveitaram do caos prisional e passaram a usar os locais de privação de liberdade como quartel general e suporte de recrutamento. Cito, a exemplo, o PCC - Primeiro Comando da Capital – que se tornou rapidamente uma das maiores organizações criminosas da América do Sul.

Nesse contexto, atendendo ao chamado do Ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski, acompanhando o movimento nacional de desencarceramento, realizamos a primeira audiência de custódia na cidade de Cuiabá, Estado de Mato Grosso, no dia 24 de julho de 2015.

Até 31/12/2019, 15.044 presos foram apresentados a um Juiz Criminal de Cuiabá, com 58% de soltura imediata, 12,5% de notificação de casos de tortura e 4.276 encaminhamentos assistenciais – diga-se tratamento de drogas, emprego, estudo, etc.

Detectamos que houve um relevante avanço civilizatório e um natural nivelamento do ordenamento jurídico brasileiro aos Tratados Internacionais, como também, após mais de quinze mil audiências de custódia realizadas em Cuiabá, detectamos empiricamente várias situações, dentre elas cito:

  1. O contado direto e imediato do Juiz com a pessoa presa aumentou o nível de cientificidade da autoridade judiciária para decidir a partir do material oral apresentado.
  2. Houve um incremento e maior tutela na proteção da integridade física e psíquica da pessoa presa, porque a oitiva qualificada da pessoa custodiada imediatamente após o flagrante, com perguntas sobre as circunstancias da prisão, fornece ao Juiz elementos para perceber e materializar indícios quanto à ocorrência de tortura e violência institucoinal, bem como efetivar as providências em caso de apuração de indícios de tortura nos termos do Protocolo II da Resolução 213 do CNJ e Protocolo de Istambul.
  3. A identificação por parte da autoridade judicial de outras sérias violaçãos a direitos fundamentais (uso indevido de algemas e marca-passos, recolhimento em quartel militar de presos civis, presos de gênero diverso ou adolescentes com maiores de idade presos na mesma cela, recolhimento em viaturas ou contêineres, etc).
  4. A interrupção das carreiras criminosas e diminuição do desvio secundário (outsiders), na medida em que 58% dos presos em flagrante não ingressaram um dia sequer em penitenciária ou cadeia – com soltura imediata -  logo 8.726 pessoas ficaram livres dos efeitos deletérios sociais e psicológicos da estigmatização e do recrutamento pelas facções criminosas.

Com fundamento na experiência e nos números oficiais comprova-se o sucesso do projeto audiência de custódia no Brasil e, em particular, em Cuiabá. Os baixos índices de reingresso (de somente 16%) comprovam que a preservação dos direitos humanos e respeito aos tratados internacionais são valores compatíveis e conciliáveis com a segurança pública.

Felizmente, não existe ou não se aplica o famoso paradoxo entre a liberdade e segurança defendido por Zygmunt Bauman, no que diz respeito às audiências de custódia em relação à segurança pública, porque a partir da implantação das audiências de custódia houve uma maior proteção às liberdades individuais, especial prevenção à tortura e proteção da dignidade humana, ao mesmo tempo que, a sociedade experimentou uma importante diminuição dos índices de criminalidade.

Após a implantação das custódias não houve aumento da criminalidade, muito pelo contrário, ocorreu minoração dos índices dos principais delitos em Cuiabá e no Brasil. Tomemos a exemplo os crimes de morte violenta intencional e roubo de veículos.

Conforme pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, publicada em seus Anuários, em 2014 a cidade de Cuiabá tinha a taxa de 45,5 crimes com mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes, compreendidos homicídios, latrocínios e lesões seguidas de morte. A partir de 2015, ano da implantação do projeto de custódia, os números começaram a baixar, chegando em 2018 a um patamar menor de 20,6 mortes por 100 mil habitantes, com uma diminuição de 54,5%. Também visualizamos um declínio importante nos crimes de roubo e furto de veículos num patamar considerável de aproximadamente 35,4%, segundo os dados dos Anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Evidenciamos também nos relatórios oficiais do TJMT que as prisões em flagrante também diminuíram na cidade de Cuiabá. A média/mês de audiências de custódia realizadas em Cuiabá diminuiu 20,4%.

Como visto, o impacto das audiências de custódia na segurança pública foi extremamente positivo. A conclusão é que a realização das audiências de custódia é compatível e conciliável com a segurança pública e, relevante ressaltar, que existe uma tendência de que as audiências de custódia possam contribuir com a redução da taxa de criminalidade, necessitando maiores pesquisas a respeito.

Após análise da sistemática brasileira ao longo dos anos, conclui-se que mais prisões provisórias, mais intolerância, mais policiais, mais juízes, mais penas, têm apenas um resultado: mais presos, não necessariamente há uma diminuição da criminalidade, porque delitos têm inúmeras causas e uma gama enorme de controle, e o excesso de prisões pode ocasionar apenas mais carreiras criminosas, gerando mais crimes.

Importante considerar que muito se tem a construir na mudança de paradigma dos operadores do direito, em especial dos magistrados criminais.

Temos que o magistrado criminal deve ser sensível como um médico, com uma vida fadigosa dedicada inteiramente aos vulneráveis e miseráveis. O médico e o juiz criminal devem empregar os melhores meios e processos para diagnosticar o problema e aplicar o melhor tratamento ao caso. Um como o outro devem utilizar-se de mecanismos para curar a pessoa enferma e tratar a sociedade e os vulneráveis da melhor forma. Da mesma maneira que um médico não pode tratar todas as enfermidades apenas e tão somente com um tipo de comprimido, ao Juiz não é dado salvaguardar a sociedade apenas prendendo pessoas, para agradar a opinião pública, a qual vê na prisão a panaceia de todos os males. Só assim os doentes serão tratados com cuidado e as pessoas em conflito com a lei julgadas com justiça.

Esta é uma versão resumida do artigo original. Para acessar a versão na íntegra, com gráficos e notas de rodapé, clique aqui.

Foto por: Vivare, Sejudh (Mato Grosso). 


Marcos Faleiros da Silva, Juiz de Direito e Coordenador do Núcleo de Audiências de Custódia do Fórum de Cuiabá (Mato Grosso, Brasil)

Blog Tuesday, June 2, 2020