Em um cárcere em São Paulo, situado no Brasil, no mês de abril de 2020, um homem preso desesperado escreveu uma carta de amor a sua companheira.

"Estou apavorado com o que pode vir. Eu quero que você saiba que você foi a melhor mulher do mundo. Em tão pouco tempo me fez muito feliz e realizado, até aqui só me deu orgulho. Me sinto o homem mais feliz do mundo. Espero que você nunca se esqueça de mim. Porque aonde eu estiver nunca vou te esquecer"[1].

A carta foi escrita depois de o homem ter descoberto que 30 presos, custodiados no mesmo estabelecimento onde estava, esperavam a confirmação sobre se tinham se infectado ou não com Covid-19:

“Tem 30 presos isolados esperando as confirmações. Tem funcionário chorando, falando que tem família, que está com medo de pegar o vírus. E nós não temos ninguém. A única coisa que nos resta é rezar. E pedir a Deus que nos proteja. Proibiram até a visita do advogado. A única pessoa que poderia fazer algo por nós”[2].

Este relato chama a atenção sobre as condições carcerárias brasileiras no contexto de pandemia. De fato, focalizar a questão é fundamental. O país tem uma das maiores populações carcerárias do mundo. E, embora detenha mais de 748.000 pessoas privadas de liberdade, o sistema penal tem disponíveis apenas 442.000 vagas[3]. Em alguns estabelecimentos, a taxa de ocupação é de 300%, isto é, três presos por vaga. Em um contexto de normalidade, como consequência das más condições carcerárias, a taxa de mortalidade por causas naturais é de 52 indivíduos para cada 10.000 custodiados, indicador seis vezes maior em comparação à população brasileira em geral.

Com a pandemia, os riscos de infecção e transmissão do vírus em espaços de privação de liberdade são muito maiores em relação ao que pode ocorrer no “mundo livre”, o que sem dúvida pioraria o número de mortes “naturais”. As péssimas condições estruturais dos estabelecimentos, somada a falta de atenção à saúde básica, são ferramentas poderosas à propagação da Covid-19 e ao aumento dos níveis de mortalidade entre os presos.

Quais são as medidas adotadas pela administração penitenciária no Brasil em face da pandemia?

O Brasil é um país federativo. Logo, as agências federais, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), produzem orientações baseadas em leis nacionais, as quais podem ser obedecidas ou não pelos distintos governos estaduais. Em março, no início da pandemia, o CNJ instou os atores penais estaduais a diminuir o número de indivíduos privados de liberdade, em especial, pessoas idosas, grávidas e presos com enfermidades crônicas. Além disso, solicitou que os estados criassem planos de contingências, voltados à adoção de medidas emergenciais, como proporcionar materiais de higiene nos cárceres.  Entretanto, parece que desenhar uma política destinada à redução dos perigos causados pela pandemia nas prisões não é uma preocupação das administrações penitenciárias estaduais. Isso porque as diretrizes do CNJ não estão sendo respeitadas de maneira efetiva.

Entre março e junho de 2020, em todo o Brasil, houve cerca de 32.500 liberações de custodiados que apresentavam algum problema de saúde, tinham mais de 60 anos ou eram presas grávidas[4]. Este universo representava menos de 4,3% dos prisioneiros. Por certo, esta medida não alcançou a outros grupos de pessoas, como os detidos provisoriamente, porque existe uma grande resistência de administradores públicos e de operadores do direito, como juízes e promotores, em adotar medidas de liberação da prisão. Eles temem que esse tipo de ação deixe os cidadãos e a sociedade em geral desprotegidos.

Por sua vez, os poucos planos de contingência desenvolvidos pelos estados beneficiaram mais aos funcionários, em detrimento das pessoas presas. Ainda assim, tais estratégias são relativamente deficitárias, pois buscam apenas fazer com que esses profissionais usem de forma periódica álcool gel e máscaras.

Além disso, inexistem medidas para testar sistematicamente a população privada de liberdade, o que impede conhecer em profundidade a situação real das prisões durante a pandemia. Portanto, ao término deste cenário, não será possível saber quantas pessoas em contato com instituições penais (custodiados e funcionários) foram infectadas pelo vírus.

Em verdade, as imprecisões sobre o impacto do Covid-19 nas prisões já são um problema real. Em 25 de junho, apenas 11.712 pessoas haviam sido testadas, ou seja, menos de 1,5% da população privada de liberdade do Brasil[5]. Entre os testados, 4.045 indivíduos confirmaram infecção (35%). Até o final de junho, 59 presos morreram, sendo que o primeiro óbito foi registrado em abril de 2020. Portanto, a taxa de mortalidade do sistema prisional por coronavírus é de oito pessoas para cada grupo de 100.000, uma das mais altas do mundo, só atrás dos Estados Unidos[6]. Tendo em conta que o Brasil é um dos menos testados, é possível especular que há muitas outras pessoas infectadas e mortas por Covid-19, o que provavelmente coloca o país em primeiro lugar nas estatísticas.

Como outra prescrição, o CNJ recomendou que, durante a pandemia, fossem mantidas as visitas familiares nos cárceres. Entretanto, ainda em março, uma das primeiras ações adotadas pelos governos estaduais foi a proibição das visitas, com a justificativa de que os familiares e amigos das pessoas presas podiam transmitir o vírus de fora para dentro dos estabelecimentos penais. Ignorou-se que os funcionários entram e saem de tais locais diariamente, o que também gera, segundo esta perspectiva, riscos de contaminação.

Esta medida produz sofrimento psicológico aos custodiados, sendo possível interpretá-la como uma forma de castigo e tortura. Além de serem essenciais para levar materiais básicos aos presos, em um ambiente altamente precário, as visitas são mecanismos de afeto e canais de informação sobre a vida doméstica. Impedir o contato entre os detidos e seus familiares exacerba as violações de direitos, assim como isola o cárcere do mundo exterior. Longe de evitar a contaminação do novo coronavírus, esta medida gera na população carcerária sentimento de revolta.

O que podemos esperar frente a esses distintos problemas?

Seria contraditório fazer predições muito positivas sobre as possíveis consequências do Covid-19 na vida das pessoas privadas de liberdade no Brasil a curto, médio e longo prazo. Deste modo, espera-se:

a) Mais mortes, embora o problema de subregistro seguirá obscurecendo as cifras reais, diminuindo a importância do que efetivamente significa a enfermidade nas prisões;

b) Vasto número de rebeliões com mortes, já que estes eventos são e seguirão sendo utilizados como estratégia, por parte das pessoas presas, de se fazerem escutadas sobre as precárias condições de privação de liberdade e para que se estabeleça algum tipo contato com o mundo fora da prisão;

c) Aumento das situações de violência cometidas por agentes do Estado, dada a compreensão de que o uso excessivo da força é a forma mais eficaz de manter a ordem e causar o medo.

Os imperativos de segurança pública e disciplina se sobrepõem à vida das pessoas privadas de liberdade, o que se reforça em contexto de pandemia. Infelizmente, as leis já existentes, as Recomendações emitidas pelo Conselho Nacional de Justiça e as medidas emanadas de organismos de direitos humanos não são respeitadas no Brasil. Se assim fosse, muitos dos problemas gerados pela Covid-19 seriam menos drásticos, garantindo a vida e uma condição de privação de liberdade um pouco mais digna.       

As cartas de amor deveriam existir só para se falar sobre o amor. Não deveriam ser usadas em uma atitude desesperada, durante uma pandemia, para dizer “adeus”.

 

Autores: 

Ludmila Ribeiro 
- Professora Associada do Departamento de Sociologia, Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, Universidade Federal de Minas Gerais.


 

Thais Lemos Duarte - Pesquisadora de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais, ex integrante do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura do Brasil.

 


[2] Idem.

 

Blog Tuesday, July 7, 2020