Autor: A. Gustavo Passos

Recentemente o Fantástico veiculou uma matéria que tratou de abordar o tema das travestis e mulheres trans privadas de liberdade. Na ocasião, o médico Drauzio Varella, que trabalha há anos com saúde prisional, conversa com Suzy. Ela não recebe visita há 8 anos. Comovido pelo relato de Suzy, Drauzio a abraça. Pouco tempo depois, começam a surgir notícias sobre o tipo criminal pelo qual Suzy foi condenada. Ela cumpre pena de privação de liberdade pelo estupro seguido de morte por asfixia de uma criança de 9 anos.

Eu fui o consultor responsável pela pesquisa LGBT NAS PRISÕES DO BRASIL: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiencias de encarceramento encomendada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), citada na matéria do Fantástico. Eu também me comovi com o relato de Suzy. É um entre os inúmeros relatos quase idênticos de abandono aos quais tive acesso. O diagnóstico nacional aponta que apenas 40% das pessoas que se autodeclararam gays, travestis ou mulheres transexuais nas prisões masculinas possuem alguém cadastrado como visitante nos seus registros nas unidades prisionais em que estão custodiadas(os). Isso não significa dizer que as pessoas com compõem esses 40% efetivamente recebem visita.

Durante a coleta qualitativa de dados, que foi realizada por meio de entrevistas presenciais, constatei que um número muitíssimo reduzido de gays, travestis e mulheres trans efetivamente recebia visitas. Embora o crime que Suzy cometeu seja gravíssimo, não conheço evidências científicas que possam garantir uma relação entre o seu tipo criminal e o abandono no contexto do encarceramento em prisões masculinas.

Quem trabalha com/em prisões sabe que as filas de visitantes nas unidades masculinas são intermináveis. Conheço inúmeros casos de homens cisgênero (que não são trans) heterossexuais que, mesmo condenados pelos crimes mais bárbaros, ainda recebem visitas de mãe e/ou de esposa, por exemplo. Um bom exemplo disso é o caso do goleiro Bruno que foi condenado por homicídio, sequestro, cárcere privado e ocultação de cadáver. Uma breve pesquisa nos sites de busca revela matérias jornalísticas que mostram que Bruno recebia visitas de sua esposa durante o cumprimento de pena em regime fechado. Portanto, se homens cisgênero sofrem menos com o abandono independentemente da condenação, parece-me razoável concluir que, convergente com o padrão nacional de vulnerabilidade para essa população, Suzy e outras mulheres trans são, sim, mais submetidas ao abandono familiar que outras pessoas privadas de liberdade.

Eu concordo que o crime que Suzy cometeu foi bárbaro, mas é importante ressaltar que execução penal em regime fechado no Brasil não prevê abandono familiar como parte da pena. Não prevê violência institucional, estupro, aluguel de pessoas como moeda de troca, utilização dos ânus das pessoas trans como local para ocultação de armamento e drogas. Nenhum outro grupo de custodiados tem seus ânus alugados por facções criminosas.

Embora no contexto da pesquisa realizada por mim no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos o tipo criminal tenha sido uma pergunta importante, no âmbito do meu ativismo, assim como para o Drauzio Varella, não me interessa saber por qual crime as pessoas estão respondendo. Finalizo reiterando que, sem dados concretos que comprovem isso, o tipo criminal não pode ser utilizado como um indicador seguro que implica no abandono da pessoa privada de liberdade. Por outro lado, ser LGBT na prisão, como descrito e argumentado detalhadamente no diagnóstico nacional, certamente submete particular e expressivamente essa população ao abandono. O abandono vivido pelas travestis e mulheres trans é, sim, um padrão de vulnerabilidade seletivo produto da transfobia que transversaliza a nossa sociedade.

A. Gustavo Passos, Doutor em Educação, membro do Comitê Diretor da Corpora en Libertad - Red Internacional de Trabajo con Personas LGBTI+ Privadas de Libertad. Foi o consultor responsável pela pesquisa "LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento", encomendada pelo MMFDH do Brasil.

 


Ao longo dos últimos anos, a APT vem trabalhando extensivamente para aumentar a conscientização sobre os riscos específicos de abuso e discriminação enfrentados por pessoas LGBTI em espaços de privação de liberdade, e promover medidas para fomentar a proteção de seus direitos e de sua integridade física e psiquica. Em 2018, a APT publicou o manual "Por uma Proteção Efetiva das Pessoas LGBTI Privadas de Liberdade: Um Guia de Monitoramento" (disponível em inglês, português, espanhol e francês para download) com o objetivo de fornecer uma metodologia prática de inspeção de espaços de privação de liberdade sensível a questões relacionadas à orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero e características sexuais. No Brasil, a APT trabalha em colaboração com mecanismos de prevenção à tortura e organizações da sociedade civil visando aumentar a conscientização sobre vulnerabilidade e necessidades específicas de pessoas LGBTI privadas de liberdade e instrumentalizar e fortalecer a capacidade de órgãos de monitoramento para prevenir a tortura e abusos cometidos contra essa população.

Blog Tuesday, June 2, 2020