Como parte da nossa Campanha Global sobre as Mulheres e a Prisão, estamos a partilhar percepções e experiências dos mecanismos nacionais de prevenção à medida que estes respondem a questões de risco para as mulheres privadas de liberdade. Aqui, Natalia Damazio e Graziela Sereno, Membros do Mecanismo do Estado para a Prevenção da Tortura do Rio de Janeiro, respondem às nossas perguntas sobre o uso de revistas corporais, que podem afectar as mulheres privadas de liberdade e os seus entes queridos.

APT: Em 2015, o MEPCT/RJ promoveu com sucesso uma mudança na legislação relativa às revistas íntimas e revistas manuais realizadas nas visitantes que ingressavam no sistema prisional para visitar seus familiares ou entes queridos. Vocês podem nos dizer porque era tão importante a adoção de tal legislação, e se, quase 7 anos depois, a lei está sendo efetivamente observada? 

Graziela: A revista vexatória sempre foi uma questão, para quem trabalha com o sistema prisional, com esses espaços de privação de liberdade, até mesmo para quem visita as delegacias quando, ainda havia as Polinters e os presos ainda ficavam presos nas delegacias e as familiares visitavam. Sempre foi um ponto de muita denúncia e muita reclamação a forma como a revista era conduzida, que em geral significavam a mulher, que é quem visita, ser obrigada a ficar nua, agachar 3 vezes, ficar em posição de cócoras. Também eram recebidos  muitas relatos de que, quando as mães levavam bebês para as visitas, eram retiradas as fraldas dos bebês. Tudo , muito desrespeitoso

No sistema socioeducativo as denúncias ainda eram piores, porque os agentes usavam as revistas para provocar, para incitar os adolescentes. Os agentes falavam coisas do tipo, “vi sua mãe nua”, “ah, sua mãe é bonita, é gostosa”. Era muito comum os agentes utilizarem isso para constranger os adolescentes. E isso sempre acabava causando confusões e brigas nas unidades. Aqui no Rio já houve rebelião no sistema socioeducativo por conta de uma revista vexatória numa mãe e o que o agente falou para o adolescente depois. Isso aconteceu aqui no Rio de Janeiro. Esse tipo de incitação e comentários sobre a mãe do adolescente acabou derivando numa rebelião na unidade.

A partir desses relatos, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ), começou a colocar algumas recomendações nos seus relatórios e a dialogar dentro da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Realizamos uma audiência pública sobre esse tema. Até que em 2015 foram aprovadas duas leis, a Lei 7.010 e 7.011, que proíbem  o uso da revista vexatória nas e nos visitantes das unidades prisionais e no socioeducativo.

O que foi muito importante na época, para além da aprovação da legislação , foi o trabalho de incidência que o MEPCT/RJ fez para garantir a compra e instalação dos scanners. Para além da aprovação da lei a gente queria evitar esbarrar naquela desculpa, “não há recursos para instalar os scanners”. Então, conseguimos que a Assembleia Legislativa fizesse uma doação tanto para a Secretaria de Administração Penitenciária do RJ (SEAP) como para o DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas) para a compra dos scanners e instalações. E mesmo depois disso, ainda continuamos fazendo um trabalho de monitoramento e convencimento junto aos diretores da unidade, até assegurar que os scanners estavam efetivamente instalados e funcionando.

Natalia: Desde a aprovação da lei, dá para gente dizer que o número de denúncias reduziu drasticamente. Drasticamente. A gente teve notícias de 2 eventos em 2018, e acho que um em 2019.  Acho que dá para a gente afirmar que não é mais como antes. A prática da revista vexatória como regra generalizada já não acontece. A lei teve sim um impacto.

Porém, é importante marcar que teve impacto principalmente a partir do momento que foi fornecido o equipamento e a estrutura para execução da Lei. Se não tivesse sido fornecido também os meios materiais para a implantação da Lei , dificilmente a legislação sozinha teria tido esse resultado. Essa conjugação de garantia, execução e a lei, acho que se pode dizer que teve um impacto considerável. Podemos afirmar que essa estratégia  teve um impacto muito positivo em termos de interrupção desta prática sistemática contra as familiares.

No entanto, estamos testemunhando contratempos a estes avanços positivos.  De dezembro de 2021 a março de 2022, recebemos semanalmente informações de que as buscas invasivas estão novamente em ascensão. Elas estão acontecendo sistematicamente em pelo menos seis unidades, inclusive no maior complexo penitenciário do Rio de Janeiro: o Complexo de Gericinó. Também recebemos relatos de que o número e a gravidade dos casos deste tipo de busca humilhante se intensificaram contra as famílias que visitam os centros socioeducativos. . Devido a esta escalada muito preocupante, está prevista uma audiência pública na Assembléia Legislativa do Estado para pedir explicações e tratar destas violações.

APT: Por quê é tão complexo e desafiador abordar a revista vexatória? 

Natalia: Um dos pontos que a gente tem frisado  é que a revista vexatória enquanto cultura, cultura institucional de tortura e estupro, viabiliza  a percepção de que esses corpos são passíveis de invasão, e logo, “estupráveis”. A gente tem entendido que é isso: dentro da cultura institucional de privação de liberdade, a revista vexatória é um dos grandes catalisadores para a violência sexual, por ser uma forma de violência sexual institucionalizada. Para a gente é muito importante demarcar aqui, que o estupro já acontece com a revista vexatória. E a extensão disso é o ocorrido, por exemplo, dentro do Centro de Socioeducação Professor Antônio Carlos Gomes da Costa (onde as meninas internadas sofreram violência sexual por parte dos agentes de segurança). Nós  entendemos que existe aí uma facilitação por essa cultura permissiva em relação à violência sexual.

Nunca foi fácil denunciar a revista vexatória porque não é fácil falar de violência sexual, há uma cifra oculta, que está presente em todas as violências sexuais. Você se expor a um procedimento desse nível de humilhação, porque é muito humilhante, né? Estar menstruada por exemplo, e passar por isso. As mulheres são insultadas. São xingadas de porcas, imundas, nojentas. E não é só a humilhação de procedimento, é o excesso da violência em cima da violência sexual que já está acontecendo. A revitimização do momento. Para a pessoa que passa por isso  falar disso, especialmente, se o Estado  legitima a ação, é muito desafiador. Até porque essa é uma das questões chave. É o estado que faz, é o estado que diz que pode fazer. Então como você denuncia isso?

APT: Como vocês abordam o monitoramento das revistas vexatórios no seu trabalho?

Graziela: Nas nossas visitas de fiscalização, nós estamos sempre perguntando, verificando se o scanner está funcionando, se é realizada a devida manutenção. Cobrando das administrações prisionais e do socioeducativo a manutenção desses equipamentos. E também sempre dialogamos com as e os familiares, perguntamos sobre como são feitas as revistas. Costumamos indagar se elas passam pelos scanners e sobre os procedimentos utilizados na revista. A informação recebida é então documentada posteriormente nos nossos relatórios.

A gente tenta sempre estar nesse diálogo com a direção e familiares, além de também procedermos com a  nossa observação direta.  Quando nós chegamos na unidade geralmente também passamos pelo scanner. Então, a gente acaba vendo se está funcionando ou não. Acho que estas são as formas  principais como verificamos.

Natalia: Como parte do registro de informação para o relatório sobre familiares, a gente acabou indo nas filas, e conversando com as familiares nas filas.

Tem também uma iniciativa que a gente desenvolveu, em parceria com a Frente pelo Desencarceramento, há quase 2 anos, que é a plataforma Desencarcera RJ, através da qual coletamos denúncias, inclusive anônimas.  Trata-se de uma ferramenta muito  importante para a gente detectar o que está acontecendo com as familiares, porque não ter revista vexatória não significa que elas estão livres de sofrer de violência. A gente vê violência em relação à custódia, quando elas contam que passaram o dia inteiro preparando as coisas para levar, e chegam lá e tudo é descartado, os agentes jogam tudo fora, misturam tudo. São agressivos verbalmente com elas também. Então há outras formas de violência que continuam ocorrendo.

O MEPCT/RJ também é parte da Frente pelo Desencarceramento.  E a Frente é composta por muitas familiares. .É importante demarcar aqui que os  e as familiares também se organizam para fazer as denúncias. . Quando há uma violação sistemática, as familiares se organizam para fazer a denúncia. Então chegam às vezes 30, 40 denúncias, na plataforma ou nos nossos celulares. Outro dia chegaram 170 denúncias na plataforma sobre alimentação. Mas as denúncias também são encaminhadas à Ouvidoria da própria SEAP, ao Ministério Público e Defensoria.

APT: Como são realizadas as revistas nas mulheres presas? As mulheres presas são submetidas a revistas íntimas? Na sua opinião, poderia-se pensar numa vedação das revistas íntimas nas mulheres que se encontram privadas de  liberdade, em moldes similares ao previsto na Lei 7.010/2015?  Conseguiríamos ver isso se concretizar em breve no Rio de Janeiro? 

Natalia: É muito comum  a revista pós visita, que ocorre depois do término da visita com o/a familiar, antes das presas e dos presos entrarem nas celas, eles também passam por um procedimento de revista. O preso fica nu. Tem que se agachar. Isso não é feito com todos os presos. Os agentes escolhem alguns presos para submeter à revista vexatória. E o que a gente escuta muito é que geralmente os escolhidos são as mulheres trans. A gente escuta muito esse relato das mulheres trans, principalmente no PresídioEvaristo de Moraes. Que elas são sempre escolhidas para as revistas vexatórias, que os agentes fazem piada sobre elas, sobre o corpo delas, as humilham. Algumas relatam até nem gostar de receber visitas, porque sempre passam pela revista vexatória, e sempre são alvos de insultos e humilhações. Então, essa é uma prática que afeta desproporcionalmente a população trans que sofre muito porque fica marcada, estigmatizada.

Existe um problema que é a dificuldade de mobilizar em torno do debate da revista vexatória praticada contra a pessoa presa. É mais tranquilo fazer esse debate quando se fala da revista feita na familiar.  Já está no senso comum que com o familiar é absurdo, com familiar é grotesco, mas esse debate não costuma sensibilizar  quando a gente está discutindo as presas e os presos. Porque aí entra o argumento da  segurança com muita força. Mas não é assim. Os presos e as presas poderiam passar pelo scanner também. O scanner está dentro do espaço da unidade.  Uma coisa é falar, eu não conseguiria passar 4000 presos de uma vez por um scanner. Mas a administração penitenciária não passa 4000 presos, faz uma amostragem para escolher quais revistar e esses escolhidos poderiam passar facilmente pelos scanners.

A gente tem tentado travar esse debate recentemente, mas não é um debate efetivamente que a gente consiga emplacar. E é um debate que é central para nós porque é falacioso quando dizem que a revista vexatória acabou no Rio de Janeiro e que ela só acontece pontualmente com os familiares. Porque ela acontece sistematicamente no Rio de Janeiro, a depender de quem você olha.

Nos adolescentes, é proibida a sua realização.  Não que a gente não tenha relatos, mas para a população adulta não está proibida. Não tem nada que freie, hoje, o poder público de praticar essa violência contra a população presa.

APT: O MEPCT do Rio de Janeiro esteve também envolvido na promoção e ações de advocacy de um projeto de lei que acaba de ser aprovado no Estado do Rio, que torna obrigatório que as unidades socioeducativas para meninas contem exclusivamente com agentes mulheres. Poderiam compartilhar conosco o que foi que vocês observaram nas unidades que impulsionou essa iniciativa?

Graziela:  A identificação dessas violações começou ainda antes de o  Mecanismo existir. Há um livro, de 2005, “Para além das grades: elementos para a transformação do sistema socioeducativo”,  da professora Maria Helena Zamora -  eu inclusive fui aluna dela – no qual ela coloca ali a observação dela, das unidades socioeducativas femininas, de os agentes colocarem tijolos para subir para ver as adolescentes tomando banho. Isso em 2003.

O Mecanismo, quando começou a realizar visitas de inspeção em 2011, começou a monitorar essa unidade, e desde o primeiro relatório do mecanismo nesta unidade, datado de 2012, sempre consta ali algum relato de alguma situação de violência sexual. Por exemplo, das meninas mostrarem o peito para os agentes em troca de algum objeto ou de alguma autorização. E os agentes justificando, que “ah, porque ela quis um cigarro”. Ainda justificando, como se a menina seduzisse o agente para conseguir algo.

O que nós sempre ouvíamos  e nos preocupava, era o discurso da direção da unidade, que refletia, ao mesmo tempo, uma infantilização  e uma sexualização dos corpos das meninas. A equipe técnica, que é formada somente por mulheres, desqualificava o que estava acontecendo. Quando a gente colocava tudo isso que nós observavamos para elas, a resposta que a gente tinha era que elas nunca tinham visto nada, que as meninas mentem, as meninas não são fáceis, elas seduzem os agentes. Tivemos caso de ver uma menina se cortando na nossa frente, nós irmos imediamente relatar à equipe técnica, que nos respondeu que ela estava fazendo isso somente para chamar a atenção. Não havia o mínimo de cuidado de saúde, de saúde mental, dentro daquela unidade para com as meninas.

Sem contar que a forma de castigo na unidade mais conhecida, e que nós do mecanismo denunciamos nos nossos relatórios em 2013, 2014, é a bailarina, que significa colocar uma menina, uma adolescente, de calcinha e sutiã, algemada na ponta dos pés.

Natalia: Traziam também a justificativa de que ninguém aguenta essa unidade. Que ninguém aguenta essas mulheres, ninguém aguenta mulheres histéricas, e que é preciso um homem para controlar, porque mulheres não conseguem controlar mulheres.

É preciso fazer uma diferenciação. Nas unidades socioeducativas masculinas, há uma gradação de idade. Existem unidades onde estão os novinhos, e outras com adolescentes com idade um pouco mais avançada. No socioeducativo feminino, não existe isso. As internas são menininhas. Grande parte ali são meninas de 13 a 17 anos com uma compleição frágil. É muito perceptível que elas são crianças, sabe? E a situação ainda é agravada por uma tentativa de  antagonizá-las, e de criar conflito entre elas. Isso acho que  foi uma das práticas mais cruéis da unidade. Tentavam antagonizar as meninas que estavam sofrendo violência sexual, como se fosse culpa delas, das próprias adolescentes. Sendo que, depois conversar com elas, percebemos que todas elas, em alguma medida, já tinham sido vítimas de violência ou de investidas e assédio por parte dos agentes dali. 

Para resgatar um pouco o histórico de como se chegou ao projeto de lei (PL), o PL, ele começou  a ser proposto pelo grupo de trabalho meninas e mulheres encarceradas, que surgiu depois do relatório sobre meninas e mulheres privadas de liberdade, que é de 2016. Ali a gente já tinha consciência de que o Degase não tomaria nenhuma iniciativa para reverter aquela situação. Então, chegamos na proposta do PL, que foi apresentado pela parlamentar estadual Tia Ju.

Mas o PL ficou ali parado por anos no legislativo. Até que veio essa essa última denúncia, nós fomos na unidade, ouvimos os relatos. A gente já tinha apresentado todas as denúncias à direção, ao MP, à Defensoria . O adolescente que fez uma das últimas denúncias, é um adolescente trans. Que se reconhecia como homem. E ele é um dos que denunciam, porque quando o abuso chega nele, ele não suporta.

 

News Friday, April 8, 2022