Rito praticado, em média, 680 vezes todos os dias no Brasil pelos Tribunais de Justiça, as audiências de custódia são hoje uma realidade no sistema de justiça criminal brasileiro. Elas servem ao propósito de que toda pessoa detida seja apresentada diante de um juiz de direito no prazo máximo de 24 horas após a prisão. A partir de 7 de janeiro, a orientação oficial é de que estas audiências voltem a ser realizadas presencialmente nos tribunais de todo o país.

No entanto, falta de informação pública sobre aspectos operacionais, das audiências de custódia pelos Tribunais de Justiça, dentre elas a identificação de quais realizam ou não audiências na modalidade virtual, tem dificultado um diagnóstico e a atuação informada por parte da sociedade e do próprio sistema de justiça sobre como são conduzidas as audiências de custódia hoje e os próximos passos na implementação de políticas e procedimentos judiciais correlatos.

Nós da Associação para a Prevenção da Tortura (APT) temos acompanhado de perto estes desdobramentos, entendendo que por trás de um rito judicial aparentemente simples, está em jogo o respeito a direitos fundamentais e a estruturação de uma rede complexa de atores, serviços e fluxos de trabalho.

Os dados que coletamos entre julho e setembro de  2022 na recém-lançada plataforma Observa Custódia revelam que, em que pese serem um rito judicial, as audiências de custódia acontecem fora dos Tribunais de Justiça em, ao menos, 26% das capitais brasileiras. Ou seja, acontecem em local cedido pelas secretarias de administração penitenciária ou em sede da polícia civil.

Ainda segundo dados da Observa Custódia, as audiências ocorriam no formato virtual em nada menos que 19 capitais brasileiras. No momento do levantamento já não vigorava o estado de emergência sanitária ocasionado pela Covid-19 e, portanto, a manutenção do formato virtual se dava sob base jurídica questionável.

Estes são fatores que, combinados, tendem a influenciar no acesso de familiares às audiências, na qualidade do ato processual e mesmo na presunção de inocência da pessoa custodiada. Por exemplo, identificamos que em 13 capitais (48%) existe a prática de manter a pessoa algemada durante a audiência, enquanto em seis capitais (22%) a sua apresentação se dá já com o uso de uniforme prisional. Em relação à detecção de abusos eventualmente cometidos no momento da detenção, embora exista orientação oficial pela realização de exames de corpo de delito antes da audiência, a Observa Custódia revela que em nove capitais (39%) o laudo pericial, em regra, não chega a tempo de ser analisado pelas autoridades durante a audiência.

Tal mapeamento  demonstra que, junto à ausência de padronização da sua realização ao redor do país, parâmetros normativos têm sido sistematicamente desrespeitados.

Ao expirar o prazo determinado pelo CNJ para o retorno ao formato presencial, a inexistência de dados sobre a operacionalização das audiências de custódia traz novamente à tona a fragilidade com que se efetivam e avaliam políticas judiciais e de direitos humanos no país, onde a vulnerabilidade nas primeiras horas após a detenção e a violência contra as pessoas detidas, majoritariamente pessoas negras, pobres e moradoras de periferias,  são uma realidade ainda persistente.

No avançar da primeira década de implantação deste importante instrumento de controle da legalidade das detenções, é preciso aprofundar o debate sobre as audiências de custódia, explicitando não apenas se as pessoas detidas foram ou não mantidas presas, mas disponibilizando informações com qualidade sobre como elas são realizadas pelos tribunais. A partir da transparência e do controle cidadão, com ferramentas como a Observa Custódia esperamos suprir lacunas e, mais do que isso, avançar no respeito a parâmetros normativos, fortalecer boas práticas e promover o efetivo acesso à Justiça e accountability no sistema de justiça.

 

Este artigo de opinião foi publicado pela primeira vez na Folha de S.Paulo e foi escrito por Fabio de Almeida Cascardo, Consultor da APT no Brasil, e Sylvia Diniz Dias, Consultora Jurídica Sênior e Representante da APT no Brasil.

News Wednesday, January 18, 2023