Visitas a locais de privação de liberdade

O que é uma visita de “caráter preventivo”?

Como o nome sugere, visitas de caráter preventivo têm como objetivo prevenir a tortura e outras formas de maus-tratos. O Protocolo Facultativo esclarece que essas visitas devem ser realizadas “com vistas a fortalecer, se necessário, sua proteção [das pessoas privadas de sua liberdade] contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes” (Art.19.a) e “com o objetivo de melhorar o tratamento e as condições das pessoas privadas de liberdade” (Art.19.b).

Em termos mais concretos, uma visita de caráter preventivo pode ser entendida como qualquer visita a um local de privação de liberdade , com o objetivo de identificar causas estruturais de maus-tratos e outros problemas de direitos humanos, para entender questões sistêmicas e encontrar maneiras de resolvê-las. Visitas de caráter preventivo não procuram reagir a incidentes ou alegações específicas, mas garantir que o ambiente de privação de liberdade em si tenha menos probabilidade de dar origem a tais incidentes e alegações. Elas são, portanto, proativas, e podem ocorrer a qualquer momento, mesmo quando não há nenhum problema aparente.

O foco das visitas preventivas está no local de privação de liberdade  entendido como um sistema, e não numa situação individual, enquanto o objetivo final é aumentar a proteção de todos os indivíduos contra a tortura e outros maus-tratos e, de maneira geral, garantir que seus direitos e dignidade sejam respeitados. As visitas de caráter preventivo fazem parte de um diálogo contínuo e construtivo com as autoridades relevantes, para melhorar as condições de privação de liberdade  a longo prazo.

As visitas preventivas podem ser aprofundadas, temáticas, ad hoc ou ter como objetivo fazer o acompanhamento de visitas anteriores.

Quais são os diferentes “tipos” de visitas?

O objetivo e o tipo de cada visita determinarão como a equipe irá proceder e, portanto, devem ser especificamente definidos de antemão. Em linhas gerais, existem cinco tipos genéricos de visita:

  1. Visitas aprofundadas: As chamadas visitas aprofundadas são, por natureza, preventivas, pois visam a ter um entendimento o mais abrangente possível do estabelecimento  visitado (prisões, delegacias, instituições psiquiátricas ou outros). No caso de unidades muito grandes,  as visitas aprofundadas geralmente duram desde vários dias a até algumas semanas, de forma a permitir a abordagem de todos os aspectos das condições e do tratamento no estabelecimento. Durante essas visitas, uma ampla gama de questões será analisada minuciosamente, desde salvaguardas, procedimentos e alimentos, até cuidados de saúde e condições de trabalho dos(as) funcionários(as) e agentes. Visitas aprofundadas, principalmente a grandes estabelecimentos, exigem uma equipe multidisciplinar com diversidade de conhecimentos profissionais, habilidades e competências. Todos os estabelecimentos dentro de um determinado país devem ser ao menos uma vez objeto de uma visita aprofundada. Visitas aprofundadas podem ser realizadas com ou sem aviso prévio, apesar de visitas anunciadas terem a vantagem de facilitar o trabalho tanto da equipe de visita quanto da equipe do estabelecimento, especialmente em grandes estabelecimentos, como prisões e instituições psiquiátricas.
  2. Visitas temáticas: O objetivo de visitas temáticas é examinar apenas questões específicas, frequentemente em uma série de estabelecimentos semelhantes, ainda que não necessariamente. Por exemplo, os MNPs podem analisar como as pessoas presas são informadas sobre seus direitos sob custódia policial, o uso de isolamento e mecanismos de contenção em instituições psiquiátricas, ou mesmo como o confinamento solitário é aplicado em diferentes tipos de estabelecimentos de privação de liberdade. Temas específicos são geralmente escolhidos a partir de alegações recorrentes sobre certas questões, quer sejam identificadas pelo próprio MNP ou por outros atores, como ONGs ou a mídia. Visitas temáticas são com frequência seguidas por relatórios temáticos, que enfatizam questões-chave de interesse para um público mais amplo. Trata-se de uma boa oportunidade para abordar as causas sistêmicas subjacentes.
  3. Visitas de acompanhamento: A maneira mais confiável de avaliar se as recomendações estão sendo implementadas é realizar visitas de acompanhamento. Visitas de acompanhamento são, por isso, baseadas em relatórios e recomendações anteriores. Elas são normalmente mais curtas do que as visitas aprofundadas, embora os MNPs possam conduzir uma segunda fase aprofundada que inclua o acompanhamento de suas recomendações feitas anteriormente. É essencial que os MNPs tenham um sistema interno eficiente para controlar facilmente os relatórios e, portanto, acompanhar adequadamente suas recomendações. As visitas de acompanhamento também podem se referir às visitas destinadas a acompanhar as recomendações feitas por outros órgãos, em especial o SPT.
  4. Visitas ad hoc: Referem-se às visitas que não são planejadas no programa de visitas. Elas podem ocorrer após um evento importante (como um incêndio ou uma greve) ou por ter sido solicitadas porque o MNP reuniu informação sobre possíveis padrões de abuso em uma unidade  específica ou em uma série de estabelecimentos. Visitas ad hoc, portanto, visam a investigar mais questões de interesse particular. Os programas de visitas devem incluir algum grau de flexibilidade e deixar espaço para visitas não planejadas, que são importantes e contribuem para o trabalho de prevenção.
  5. Visitas “reativas”: Referem-se a visitas que reajam a alegações específicas. Geralmente acontecem depois de uma denúncia recebida de uma pessoa privada de liberdade, uma familiar ou uma ONG. Elas não fazem parte do programa de visitas estabelecido. Ainda que visitas reativas possam ser necessárias, tanto para a credibilidade do MNP quanto pela urgência da situação, as  mesmas  devem permanecer excepcionais e não afastar o MNP do caráter preventivo do seu mandato.

Por que ter um programa de visitas?

De acordo com o SPT, qualquer MNP “deve planejar seu trabalho e seu uso de recursos de modo a garantir que os locais de privação de liberdade sejam visitados com frequência suficiente para contribuir efetivamente para a prevenção da tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes." Nesse sentido, os programas de visitas são uma ferramenta central de planejamento, pela qual os MNPs agendam suas visitas a uma série de locais de privação de liberdade (prisões, instituições de saúde mental, mas também – se relevante, voos de deportação e outros “locais” de privação de liberdade não tradicionais) dentro de um determinado período de tempo (normalmente anual, mas também pode ser semestral ou trimestral). Programas de visitas devem refletir as prioridades dos MNPs e devem incluir visitas aprofundadas, mas também temáticas, bem como visitas de acompanhamento. É importante que os programas de visitas também permitam que os MNPs mantenham certa flexibilidade para conseguir responder a situações não planejadas e incluir visitas ad hoc ou de reação ao seu planejamento, se necessário.

O SPT esclareceu ainda que os MNPs devem “possuir critérios para selecionar os locais a serem visitados e para decidir sobre visitas temáticas que garantam que todos os locais de detenção sejam visitados regularmente, levando em consideração o tipo e tamanho das instituições, seu nível de segurança e a natureza dos problemas de direitos humanos.” É também necessário que os programas de visitas levem em consideração o tempo exigido para a preparação, especialmente quando novas áreas ou novas questões serão monitoradas, bem como as competências, os recursos e o conhecimento demandado. Já na fase de preparação, os MNPs devem garantir que seja alocado tempo suficiente para cada estabelecimento, com base no tamanho da instituição e no número de pessoas ali encarceradas, e no tipo de visita, assim como tempo para redigir relatórios e analisar dados.

Onde e quando deve ser realizada a primeira visita do MNP?

Não existe uma solução única em relação à escolha e ao momento da primeira visita conduzida por um MNP recém-criado/designado. No entanto, é essencial que o MNP considere e reflita adequadamente antes de iniciar suas primeiras visitas. Antes de começar a visitar locais de privação de liberdade, é recomendável que os MNPs tenham um entendimento claro do marco legal e das políticas públicas, e mapeiem os locais de detenção sob o seu mandato. Também é aconselhável ter contatos preliminares com autoridades das mais altas instâncias de forma a apresentar o mandato do MNP e suas implicações na prática. Isso pode evitar mal-entendidos sobre o mandato e problemas no acesso aos estabelecimentos. Na prática, alguns MNPs podem preferir começar desenvolvendo a metodologia e o relacionamento com as autoridades antes de fazer visitas e, assim, construir conhecimento, know-how e diálogo nos primeiros meses depois de ter sido estabelecido. Outros podem preferir iniciar as visitas rapidamente e desenvolver sua metodologia e conhecimento à medida que atuam. Em qualquer caso, é importante manter flexibilidade e mente aberta para garantir uma perspectiva de desenvolvimento metodológico. Os MNPs podem preferir começar visitando presídios  e não, por exemplo, instituições de saúde mental, especialmente se houver necessidade de desenvolver conhecimento sobre assuntos específicos, como saúde mental ou necessidades particulares das pessoas com transtorno mental. No entanto, cabe ao MNP decidir e alguns podem começar visitando locais de privação de liberdade  “não tradicionais”. Independentemente da abordagem escolhida, é importante que as primeiras visitas façam parte de um programa de visitas inicial, mesmo que rudimentar. As primeiras visitas podem ter diferentes objetivos (tornar-se  conhecido pelas autoridades e pelas pessoas privadas de liberdade, explicar a competência  do MNP, ou mapear os locais de privação de liberdade).  O que é essencial é que as primeiras visitas sejam baseadas em uma estratégia e visão claras.

Quantas visitas devem ser conduzidas a cada ano?

Não há uma resposta direta para essa questão. O objetivo do Protocolo Facultativo, enunciado no seu primeiro artigo, é “estabelecer um sistema de visitas regulares [...] a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”. Há, portanto, uma exigência de regularidade que decorre do Protocolo Facultativo. No entanto, dado o amplo leque de locais de privação de liberdade abrangidos pela competência  dos MNPs, é impossível que todos os locais sejam monitorados com frequência. A regularidade deve, portanto, ser entendida de forma ampla, no sentido de que os locais de privação de liberdade  devem estar sob escrutínio regular por um longo período de tempo. As práticas dos MNPs variam enormemente: alguns fazem menos de 10 visitas por ano, enquanto outros fazem várias centenas. No entanto, esses números devem refletir a estrutura, os recursos disponíveis e o contexto específico de cada MNP (incluindo a população, o tamanho e a geografia do país), que também variam enormemente de um país para outro. Alguns MNPs conseguem combinar qualidade e quantidade, mas isso não está ao alcance de todos os órgãos de monitoramento, particularmente as instituições pequenas e com recursos limitados. Embora os MNPs possam ser pressionados por outros atores – como o Parlamento, órgãos governamentais ou organizações da sociedade civil – para que “façam mais”, eles devem resistir à tentação de multiplicar o número de visitas apenas para mostrar que são ativos, pois as visitas acabariam sendo superficiais ou o MNP ficaria sem capacidade de fazer o acompanhamento adequado das mesmas,  ou de suas  recomendações. A qualidade das visitas é um pré-requisito para fazer análises qualitativas e recomendações e, por sua vez, produzir relatórios e recomendações robustos, de alta qualidade, e baseados em evidências. Tal constitui uma das  melhores maneiras de demonstrar a relevância do MNP. Além de contar o número de visitas conduzidas anualmente, a prática de contar com precisão o número de dias dedicados a cada estabelecimento – assim como o total de dias gastos em todos os estabelecimentos ao longo do ano – é uma boa maneira de refletir sobre a qualidade e o tipo das visitas. Essas informações também podem ser incluídas nos relatórios anuais.

Os MNPs devem realizar tanto visitas anunciadas quanto não anunciadas?

Visitas não anunciadas são definidas pelo fato de não serem notificadas às autoridades. Geralmente fazem parte do programa de visitas e podem tanto ser visitas aprofundadas, temáticas ou de acompanhamento, quanto também podem ocorrer nas pausas previstas  no programa ou planejamento de visitas, como visitas ad hoc ou de resposta  a alegações específicas ou a incidentes. O Protocolo Facultativo não usa expressamente o termo “visitas não anunciadas”, mas esse poder está implícito nos artigos 12(a), 14 (c) e – particularmente para os MNPs –  no artigo 20(c). O SPT ainda esclareceu que o Estado deveria “garantir que o MNP possa realizar visitas da maneira e com a frequência que o próprio MNP decida. Isso inclui a capacidade de realizar entrevistas privadas com pessoas privadas de liberdade e o direito de realizar visitas sem aviso prévio a todos os locais de privação de liberdade, de acordo com as disposições do Protocolo Facultativo.”

Os MNPs podem considerar que anunciar suas visitas, especialmente em caso de visitas aprofundadas a estabelecimentos muito grandes, pode facilitar a condução da visita e o diálogo geral com as autoridades. Isso permite, por exemplo, que o MNP obtenha informações específicas antecipadamente e chegue a um acordo sobre reuniões preliminares, mas também garante que o diretor do estabelecimento possa adotar as providências necessárias para disponibilizar a equipe e limitar o máximo possível a interferência no trabalho cotidiano. Às vezes, visitas são anunciadas com a antecedência de algumas semanas – ou apenas alguns dias – sem especificar as datas exatas, de forma a permitir que as autoridades se preparem, mantendo, ao mesmo tempo, um elemento de surpresa. Algumas visitas, no entanto, devem geralmente não ser anunciadas, particularmente visitas a delegacias, onde o risco de maus-tratos costuma ser maior do que em outros locais de custódia. O “efeito surpresa” é também particularmente relevante, já que as pessoas detidas podem correr o risco de serem removidas, escondidas ou transferidas antes da visita, caso ela seja anunciada. Visitas não anunciadas também podem aumentar a credibilidade do MNP, tanto perante as pessoas detidas quanto perante a sociedade em  geral.

Como conduzir uma visita de caráter preventivo?

A realização de visitas de caráter preventivo requer uma metodologia específica, que inclui a preparação, a condução da visita  em si e o acompanhamento da visita. Algumas considerações são específicas para cada tipo de local (por exemplo, delegacias, centros de detenção de migrantes ou estabelecimentos penais  de mulheres), ainda que haja uma base comum para todos. Em linhas gerais, a visita de monitoramento comumente  inclui uma conversa inicial com a direção da unidade, uma caminhada pelos espaços e instalações , entrevistas reservadas com pessoas presas e funcionários(as), observações, análise de registros e outros documentos relevantes, e uma conversa final com a direção. Todas as fontes de informação devem ser trianguladas de forma a garantir que as conclusões  sejam objetivas e robustas.

Qual é a “duração média” de uma visita de caráter preventivo?

A duração de uma visita de caráter preventivo dependerá em grande medida do tipo de visita (aprofundada, temática, ad hoc, de acompanhamento), bem como do tamanho do estabelecimento e do número de pessoas privadas de liberdade na unidade.. Outros fatores que impactam a duração incluem o tamanho da equipe que realizará a visita de monitoramento, seu grau de experiência e conhecimento, bem como os problemas que serão identificados na unidade. Ainda que seja impossível precisar qual seria a duração apropriada de uma visita, as seguintes observações podem ser úteis:

  • Mesmo a visita a um estabelecimento pequeno, como uma delegacia, exige tempo para identificar possíveis padrões de abuso e ilegalidades.
  • Todas as visitas – especialmente visitas aprofundadas – exigem o cumprimento de determinadas etapas, desde uma conversa inicial com a direção, uma visita às instalações, entrevistas com pessoas presas e funcionários(as), análise de documentação e conversa final com a pessoa encarregada. Em estabelecimentos pequenos, com poucas pessoas detidas, também é recomendável conduzir entrevistas com todas elas, para mitigar o risco de represálias. Portanto, não é provável que qualquer visita de caráter preventivo, mesmo a um estabelecimento pequeno, possa ser realizada em menos de um dia inteiro.
  • Visitas a estabelecimentos grandes, com mais de 100 pessoas presas ou privadas de liberdade, particularmente quando são visitas aprofundadas olhando para todos os aspectos da detenção, devem durar pelo menos alguns dias. Alguns MNPs passam até duas semanas ou mais inspecionando  locais de detenção que sejam muito grandes, como prisões, centros de detenção de migrantes ou hospitais psiquiátricos.
  • Passar tempo suficiente em qualquer estabelecimento é a única maneira de ter uma noção real do ambiente e da atmosfera que existe no local. Dedicar tempo para observar interações e processos fornece informações ricas e é um componente importante de qualquer visita preventiva.
  • Uma boa preparação, assim como um trabalho de equipe bem estruturado, são a melhor maneira de garantir que o tempo seja gasto de forma eficiente nos estabelecimentos.
  • A possibilidade de incluir visitas noturnas, assim como visitas aos fins de semana, deve ser considerada ao se decidir sobre a duração da visita. Para determinar o melhor momento para a visita é importante considerar quando os riscos são maiores (por exemplo, nas delegacias durante os fins de semana ou em hospitais à noite de forma a verificar  se as pessoas são tratadas de maneira diferente no turno da noite).