O que podem fazer os órgãos de monitoramento para prevenir a tortura e os maus tratos no contexto de grandes manifestações durante as quais ocorrem detenções arbitrárias e repressão policial?

Neste vídeo entrevistamos Fábio Simas, membro do mecanismo local de prevenção do Rio de Janeiro, quem nos descreve como ele e outros membros da sua equipe atuaram durante a preparação da Copa do Mundo no Brasil.

Meu nome é Fabio Simas, eu sou membro do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. O mecanismo do Rio é criado pela lei 5778 no ano de 2010 e decorre do compromisso do Brasil ao ratificar o Protocolo Facultativo da Convenção da ONU contra a Tortura de implementar órgãos com objetivo de fazer inspeções nos locais de privação de liberdade, locais onde se dá mais recorrentemente práticas de torturas e maus tratos.

No último ano, ocorreram muitos protestos em diversas cidades brasileiras, entre elas o Rio de Janeiro. Você pode nos contar como tem sido o trabalho do Mecanismo e sua atuação no contexto de protestos sociais.

O trabalho do Mecanismo consiste no monitoramento de locais de privação de liberdade como forma de prevenir a tortura. Ocorre que no ano passado, em decorrência das manifestações do mês de junho durante a Copa das Confederações sobre todo por questionamentos em relação aos gastos excessivos pra a Copa do Mundo e a precariedade da política social no país. Houve uma mobilização histórica, especialmente no mês de junho. E a repressão do Estado foi bastante forte, com grande número de pessoas feridas, machucadas e presas arbitrariamente. Sabendo disso, o Mecanismo atuou atendendo estas pessoas privadas de liberdade, para garantir de forma preventiva seus direitos.

Como você descreve a reação da polícia e das autoridades nessas manifestações?

As respostas da polícia, de uma forma geral, se deram de uma forma bastante truculenta, com uso excessivo da força, utilização abusiva de armas não letais como gás lacrimogêneo e prisões arbitrárias. Diferentes tipos de prisões arbitrarias e tipificação penais também arbitrarias. Uma das tentativas do Estado foi de proibir o uso de máscaras na rua. Além de toda a agressão contra os manifestantes. Há um histórico no Brasil de violência policial. Sobretudo, é mais direcionada às populações pobres, às populações das favelas. Como no ano passado, no contexto das manifestações houve grande repercussão nacional e internacional, a polícia atuou quase que da mesma forma, só não utilizando reiteradas vezes armas de fogo. Entretanto, houve uma situação numa favela do Rio, numa manifestação também no mês de junho, que por estar lidando com populações residentes das favelas, a polícia utilizou armas de fogo e algumas pessoas foram inclusive assassinadas.

E no contexto particular da prisão, como foi a resposta da polícia? As pessoas eram levadas presas a diversos locais, mas parece que o Mecanismo conseguiu que fossem detidas em um só local. Será que você pode nos contar como se deu isso, e outros exemplos de como o Mecanismo atuou frente às violações que se davam durante as manifestações?

Sim, primeiramente, estas detenções arbitrárias ocorrem na rua, e as pessoas são levadas para a unidade policial mais próxima, geralmente no centro da cidade que é o local onde se têm mais manifestações, e ao mesmo tempo há uma equipe de advogados, formada por exemplo por defensores públicos têm feito a defesa dessas pessoas nas delegacias. Ocorre que alguma dessas pessoas, dezenas delas, mesmo com defesa são levadas para dentro do sistema penitenciário.  Sabendo disso, o Mecanismo se utilizou do instrumento da visita de monitoramento, inspecionou essas unidades e conversou com essas pessoas dias depois de elas serem detidas.

O Mecanismo do Rio de Janeiro conseguiu celebrar um acordo com a Secretaria Estadual de Administração Penitenciária quanto às pessoas presas durante os protestos. Você pode nos contar um pouco mais sobre esta experiência?

Como as detenções nas manifestações são de uma forma geral provisórias -  as pessoas costumam permanecer no sistema penitenciário semanas - umas das estratégias adotadas pensando na forma preventiva da tortura e maus tratos, foi de estabelecer uma unidade especifica, uma galeria especifica num presidio ou penitenciaria para serem levadas essas pessoas detidas nas manifestações. Também articulamos algo similar com o sistema socioeducativos de adolescentes. Tínhamos contatos direto com o diretor da unidade onde os adolescentes eram recebidos até para saber que situação de tortura, de ferimento e de maus tratos estas pessoas sofreram. Vale destacar que em relação às prisões arbitrárias, há um caso referente, há um caso emblemático de um rapaz chamado Rafael Braga. Ele é a única pessoa que ainda continua presa como resultado das manifestações do ano passado. Ele é morador de rua. Ele foi preso no Rio de Janeiro, detido porque usava um produto de limpeza chamado de Pinho Sol e a alegação das autoridades, tanto da polícia como do judiciário, é que com aquele produto de limpeza se poderia fazer um explosivo, o que a gente considera uma situação de completo absurdo e arbitrariedade. Ele continua ainda no sistema de detenção do Rio de Janeiro.

Nesta situação, como o Mecanismo tem colaborado com outros atores?

Na estrutura do Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Estado de Rio de Janeiro há o Comitê Estadual. O Comité é um colegiado institucional formado por diversos órgãos. Dentre deles a defensoria pública, a Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Ou seja, essa articulação do Mecanismo com essas entidades é constante. E na questão das detenções em razão das manifestações, cada  uma destas instituições, tendo em vista sua atribuição legal, colaborou com o Mecanismo tanto no que se refere a continuidade do acompanhamento dos casos tanto no que se refere a passar para o Mecanismo informações sobre pessoas detidas e privadas de liberdade.

Nos preparativos para a Copa do Mundo, que se realiza nesses dias no Brasil, houve um fenômeno de “limpeza” das grandes cidades. Quais preocupações teve o Mecanismo frente a tais situações no Rio de Janeiro e o que significou para vocês?

Analisando de uma forma ampla, os grandes eventos, os megaeventos se constituem em momentos específicos de limpeza social, de detenção, e isso é um fenômeno que ocorre mundialmente. Acho que praticamente em todos os grandes eventos, tanto na Europa, como na África, como no Brasil, ocorrem este tipo de situação. Por outro lado, um país como o Brasil com uma desigualdade social tão gigantesca e com as manifestações tão expressivas no ano passado, houve uma grande preocupação em relação a esta Copa do Mundo. O que a gente tem observado já há muitos anos, quer dizer não só na Copa do Mundo mas também em outros eventos sediados no Brasil e no Rio de Janeiro, como por exemplo na Jornada Mundial da Juventude, na Conferência da Onu Rio +20, na Copa das Confederações, etc. Durante este período, a gente tem observado recolhimento de pessoas pobres, em situação de rua, mandadas para abrigos distantes dos centros das cidades e inclusive nós do Mecanismo visitamos essas instituições, e um aumento da população carcerária no Brasil e no Rio de Janeiro nos últimos 3 anos, tanto no sistema para adultos, tanto no sistema socioeducativo para adolescentes. O que a gente conclui então é que há um histórico desta prática de limpeza social, de prisão arbitrária de pessoas como preparação para a Copa do Mundo. Atualmente o que a gente tem observado é um número até menor em relação com o ano passado. Tem tido um número bastante expressivo de manifestações no Rio, só que não com um número de pessoas tão alto como no ano passado. Eu acredito que pelo número menor de pessoas participando dos protestos, e também pela repercussão da violência policial do ano passado e as denúncias feitas, acredito que a violência e a repressão diminuíram um pouco, porém não desapareceram. As práticas de violência contra manifestantes continuam constantes, assim como a violência arbitrária da polícia nas ruas do Rio de Janeiro e de São Paulo, e no Brasil de uma forma geral.

Para vocês como membros do Mecanismo, quais são as lições aprendidas do trabalho que realizaram em torno da Copa e de outros megaeventos?

Os grandes eventos e todo o poder econômico e visibilidade que eles trazem consigo é uma forma de mascarar a realidade no Brasil, um país com uma das maiores desigualdades sociais do mundo. Desta forma, esses eventos e a preparação para esses eventos e a repressão a partir deles provavelmente  aumentará. O que a gente tem indicado para outras organizações é que é importante fazer esse trabalho preventivo com as autoridades públicas e tornar público, tornar visível essas práticas de violência que as autoridades tentam esconder, tentam não visibilizar. A gente tem um trabalho de mostrar essas contradições.

Que conselhos e recomendações, como Mecanismo de Prevenção do Rio de Janeiro, daria a outros Mecanismos ao redor do mundo para prevenir a tortura e outras formas de maus-tratos?

Em primeiro lugar, os mecanismos têm que atuar no sentido de um diálogo preventivo com as autoridades. Sabendo disso, pode-se prevenir as práticas de violência contra as manifestações. Por outro lado, a questão das prisões arbitrárias, não envolve somente o sistema penitenciário, envolve toda uma conjuntura, toda uma política referente por exemplo a pessoas em situação de rua. No contexto de grandes eventos é fundamental que o Mecanismo se articule com os outros órgãos de defesa de direitos humanos dentro da realidade de cada país e que se empenhe, sempre quando receba notícia de uma grande manifestação e da prática de violência, em estar no dia seguinte já inspecionando, já conversando com essas pessoas como forma de prevenção.

Muito obrigada. Para vocês, quais são as medidas concretas que o Estado deve tomar para respeitar os direitos humanos nessas manifestações?

No caso do Brasil, primeiramente, a coisa mais básica é entender que no Estado democrático de direito há de se respeitar o direito à manifestação. Esse é um ponto principal que deveria prevalecer em toda democracia. E no Brasil, isso ainda representa uma grande dificuldade, quer dizer, mesmo passado 50 anos do golpe militar, na sociedade brasileira, de uma forma geral, ainda repetem muito estas práticas autoritárias. Autoritárias e arbitrárias contra a população de uma forma geral, mas principalmente contra a população pobre. Uma caracterização disso é a própria existência de polícias militarizadas que fazem policiamento ostensivo; são figuras militarizadas que têm uma função mais de repressão e combate ao inimigo do que de garantir segurança pública e direitos fundamentais. Acho que superado esse ponto inicial, o que se tem que pensar é que a questão do uso da força só deve ser feito em último caso tanto no sentido de conter alguma situação de violência. Devem ser ocasiões excepcionais, assim como as prisões devem ser excepcionais, o que não tem ocorrido no Brasil. Mas fundamentalmente deve-se observar e garantir o direito das manifestações como parte da democracia e do estado democrático de direito.

Blog Wednesday, August 5, 2020